sábado, 15 de janeiro de 2022

Bem-vinda de volta

 Sozinha. Entendendo esta palavra, como me caber nela e como ela cabe em mim.

Não foi uma escolha colocá-la pra dentro. Ela veio me espreitando, enquanto me distraía com a cor da sacada, com a porta que range, com o pêlo do gato. Ela vinha no sonho, fazendo eco. Fiz uma lista enorme de tarefas pra me deixar bem ocupada. Quando as tarefas domésticas acabaram, e o trabalho estava feito, e o mercado estava feito, e o amor acabado, percebo que não tem nada que me distraía do tamanho do buraco. Há algum tempo parei com o álcool, que propunha a fuga alucinada desse buraco, todavia só o deixava maior e maior. E machucava. Estar sozinha num buraco e lambendo as feridas aconteceu. Noutros tempos, agora só eu e o buraco. Mas ainda machuca tanto, por que? 

Nada me preparou para isso, a vida não tem esse ensaio. Nunca deixei de estar só, ainda que tenha colocado muita coisa pra dentro, com um pouco de compulsão. Movida pelo medo, pelo abandono de mim mesma. É imenso estar só, por isso o medo. É bom quando alguém se aproxima, nos momentos em que estamos frágeis e assustadas e diz: "Você não está só". E é uma ilusão que às vezes a gente precisa pra seguir adiante. Uma muleta necessária e às vezes até bonita. A ilusão é bonita mesmo, não vou desfazer desse valor. Mas ela não dá conta. Uma hora vamos ter que encarar a imensidão de sermos quem somos e estar onde estamos.

Primeiro chorei. Também não escolhi chorar, o choro só veio, doído, avassalador: uma barragem, que antes dava limite às emoções profundas, desmorou. Assumi o choro, colocando intenção nele. De livramento, de desapego. Chorar também foi um direito que dei a mim mesma, que fora retirado de mim quando criança. Mesmo quando violento, minha criança tentou, porque foi imposto, segurar o choro. Com medo, já sozinha na imensidão. Chorei por hoje, por ontem, por todos os anos. Por todo o medo e por toda dor. Pelo sentimento de abandono, pela falta. Pela incerteza que assusta. E quando achei que já tinha me esgotado, chorei ainda mais. Chorar também é liberdade. De sentir e de fluir. Chorar sozinha não mobiliza o outro, mas nos move.

Depois do choro é como depois da chuva, uma paz molhada. É o esvaziamento.

Na umidade também é onde as coisas germinam. De onde se nasce. E a gente aprende com as plantas que brotar demora. Demora pois há trabalho, de se realizar. Se entender viva e gente. Se entender frágil e forte. É preciso também querer e querer muito. Procurar onde ainda há desejo de estar viva. Alimentar o desejo como uma fera desconhecida. Desejar-se viva e só. Dormir no tempo segurando suas próprias mãos. Alimentar a si mesma, a sua própria fera. Sentir também a fúria, descobrir-se furiosa. Entender que tudo é energia que faz a vida brotar.

Nesse buraco, molhada e furiosa, a frágil haste se levanta. Se levanta por conta própria, sozinha, empurrando a terra e subindo. Não dá pra saber onde é que isso vai dar, mas levanta-se mesmo assim. Acreditar no brilho da incerteza. Não saber é bonito também, mais bonito até que a ilusão porque é cru e vivo. Atenta e curiosa, vejo a solidão nascendo. Se der sol, pode que vire uma solitude bonita. Se secar muito, há de chover novamente. Se der frutos, talvez alimente. Se der flor, embeleze. Se não der em nada, tem seu valor só em ser.

Não saber é imenso, assim como a solidão, onde dentro cabe tudo. É um lugar que se pode ocupar. Existir na solidão, na imensidão, na dúvida, é acima de tudo existir. Se essa é a força do momento, vou por ela ser habitada. Como já disse Julia, a entrega é melhor que o controle.



Bem-vinda de volta

  Sozinha. Entendendo esta palavra, como me caber nela e como ela cabe em mim. Não foi uma escolha colocá-la pra dentro. Ela veio me espreit...